Encenada pela primeira vez em 1943, a peça de Nelson Rodrigues
mostra ações simultâneas em três planos – da realidade, da alucinação
e da memória e deu início ao processo de modernização do teatro brasileiro.
Aplausos dos insultados
A peça "Vestido de Noiva", de Nelson Rodrigues, é um marco na história
Aplausos dos insultados
A peça "Vestido de Noiva", de Nelson Rodrigues, é um marco na história
da dramaturgia nacional. A primeira montagem, em dezembro de 1943,
deu início ao processo de modernização do teatro brasileiro.
Essa era a segunda peça escrita por Nelson.
Essa era a segunda peça escrita por Nelson.
O autor trabalhava como jornalista, profissão que herdara do pai, e
procurava, naquele período, uma fonte de sustento complementar.
Seu primeiro trabalho para os palcos, "A Mulher sem Pecado", tinha
como pretensão conseguir o sucesso obtido por outras produções da época,
como A Família Lero-Lero, comédia de Raymundo Magalhães Júnior.
Embora a peça de Nelson fosse uma obra de valor artístico muito superior
à de Magalhães Júnior, ao estrear, em 1942, não obteve a simpatia do
público e resultou em fracasso de bilheteria.
Um ano depois, Vestido de Noiva, de estrutura mais complexa, iria
Um ano depois, Vestido de Noiva, de estrutura mais complexa, iria
revolucionar o teatro brasileiro. A montagem foi realizada sob a direção do
polonês Zbigniew Marian Ziembinski, que chegara ao Brasil cerca de dois
anos antes. Experiente encenador, Ziembinski deu forma ao texto de Nelson.
Seu rigor na encenação, com a exigência de ensaios constantes, levou a
concepção brasileira de teatro a novos níveis.
A grande tensão que permeia a peça não se mostra apenas no antagonismo
A grande tensão que permeia a peça não se mostra apenas no antagonismo
entre Alaíde e Lúcia, mas nas relações conflitantes entre todos os personagens.
Nas cenas, a angústia da culpa supera sempre os tons de ternura amorosa com
que geralmente são apresentados os laços familiares.
As relações de desejo são também relações de ódio.
Um exemplo é a relação entre Lúcia e Pedro, cujo impulso poderia parecer
Um exemplo é a relação entre Lúcia e Pedro, cujo impulso poderia parecer
exclusivamente erótico, um desejo cuja realização era impossibilitada pelo
casamento entre Pedro e Alaíde. Tendo morrido Alaíde, era de esperar que
um se entregasse ao outro imediatamente, mas o mecanismo da culpa atua,
o que leva Lúcia a prometer diante do cadáver da irmã jamais ficar com Pedro.
Desse conflito se depreende toda uma rede de ambivalências, que nascem
também sob o signo do ridículo.
O gênero que, por excelência, incorpora o ridículo da desmesura sentimental
O gênero que, por excelência, incorpora o ridículo da desmesura sentimental
é o melodrama moderno. Isso ocorre porque o melodrama parece tentar imitar
a catarse da tragédia clássica numa época em que a indignação já não tem lugar.
Valores como a honra perderam o significado, numa sociedade em que a
dignidade depende de pressupostos materiais.
A peça configura uma crítica cáustica a determinada classe da sociedade
A peça configura uma crítica cáustica a determinada classe da sociedade
carioca. Tal como ressalta o crítico Ronaldo Lima Lins: “Vestido de Noiva
movimenta seu drama dentro de um círculo fechado. Ali está uma peça cujos
problemas se passam no nível da pequena burguesia, que a aplaudiu e lhe deu
notoriedade”. Nessa maneira velada de ação, está o êxito do teatro de Nelson
Rodrigues: agradar a sua plateia, ao mesmo tempo em que a insulta.
Estrutura
A representação é dividida em três planos: da alucinação, da memória e da
Estrutura
A representação é dividida em três planos: da alucinação, da memória e da
realidade. Há também duas escadas laterais. A peça se desenrola em três atos,
cuja relação não é exatamente cronológica, a não ser no plano da realidade, o
qual acompanha a degradação do estado de saúde de Alaíde e a aniquilação
consequente dos outros dois planos.
Comentário do professor
Escrita e levada à cena em 1943, "Vestido de noiva" é uma espécie de "divisor
Comentário do professor
Escrita e levada à cena em 1943, "Vestido de noiva" é uma espécie de "divisor
de águas" do teatro brasileiro. Trata-se de uma peça revolucionária do ponto de
vista estético-estrutural, cuja lógica interna remete a recepção (público) a um
estado de perplexidade até então não protagonizado na dramaturgia brasileira.
O argumento gira em torno da vida de Alaíde, personagem representativa da
burguesia carioca, que morre tragicamente em um acidente (atropelada).
Alaíde é levada ao hospital e, enquanto os médicos tentam salvá-la, ela
protagoniza um tipo muito peculiar de viagem interior, uma jornada psíquica,
de uma profundidade imaterial e antropológica que resgata seu passado e as
figuras humanas que exerceram papéis decisivos em sua constituição. Alaíde,
mulher voluntariosa e arrogante, conquistou Pedro, o namorado da irmã, Lúcia.
Admiradora de Madame Clessi, antiga prostituta do Rio de Janeiro,
Alaíde via em sua figura uma espécie de modelo de liberdade e de transgressão
dos valores sociais. Enquanto está casada com Pedro, este protagoniza um caso
adúltero com Lúcia, personagem com quem primeiro ia se casar. Após a morte
de Alaíde, Pedro e Lúcia se casam, sem o menor remorso.
"Vestido de noiva" é uma peça absolutamente inusitada, porque o argumento
"Vestido de noiva" é uma peça absolutamente inusitada, porque o argumento
acima proposto é apresentado sob uma perspectiva não linear e aparentemente
caótica. A estrutura da obra, como referimos acima, propõe três planos:
1) Plano da realidade – Alaíde é atropelada e levada ao hospital.
Enquanto os médicos tentam recuperá-la, a imprensa divulga a notícia do trágico
acidente. Não resistindo aos ferimentos, Alaíde morre. 2) Plano da alucinação –
Alaíde está em busca de uma mulher misteriosa, Madame Clessi, prostituta que
fora assassinada pelo namorado de dezessete anos. Os diálogos entre ambas são
esclarecedores e convergentes para a resolução dos dramas da personagem
central. 3) Plano da memória – as lembranças do passado de Alaíde vêm à tona
e se consubstanciam com as imagens do plano da alucinação.
É possível imaginar a extraordinária produção cênica que essa concepção
teatral exigiu, principalmente de atores e equipe técnica, quando foi pela primeira
vez apresentada, em 1943. A crítica social é inquestionável, pois Nelson
Rodrigues não perdoou a hipocrisia social. Por isso mesmo, fez do teatro uma
ferramenta de denúncia, capaz de pôr por terra as máscaras (assim como fizera,
no século XIX, Machado de Assis), revelando a face sombria e desumana da
sociedade carioca do século XX.
Primeiro Ato
A peça inicia-se com sons bastante conhecidos pelos habitantes de qualquer
Primeiro Ato
A peça inicia-se com sons bastante conhecidos pelos habitantes de qualquer
metrópole:
“Buzina de um automóvel. Rumor de derrapagem violenta. Som de vidraças
“Buzina de um automóvel. Rumor de derrapagem violenta. Som de vidraças
partidas. Silêncio. Assistência. Silêncio”.
Cria-se, dessa forma, na imaginação do espectador, a cena de um atropelamento.
Cria-se, dessa forma, na imaginação do espectador, a cena de um atropelamento.
Acende-se o plano da alucinação, e Alaíde chama por Madame Clessi.
Encontra-se com vários personagens desconhecidos, ele que, aos poucos, lhe
informam que Clessi fora assassinada. Alaíde desespera-se.
Acende-se o plano da realidade, com várias pessoas falando pelo telefone ao
Acende-se o plano da realidade, com várias pessoas falando pelo telefone ao
mesmo tempo. São repórteres que noticiam o atropelamento.
No plano da alucinação, Alaíde está num bordel e recebe um homem que tem
o rosto de seu marido. Suas atitudes são extremadas: acaricia o homem e o
esbofeteia. Alaíde repara que todos os homens que aparecem têm o rosto de
seu marido e encontra Madame Clessi, que a ajuda a lembrar-se da infância.
O plano da memória registra o diálogo entre os pais de Alaíde a respeito de
O plano da memória registra o diálogo entre os pais de Alaíde a respeito de
Madame Clessi, antiga habitante da casa.
No plano da realidade, o diálogo lacônico entre os médicos revela que Alaíde
No plano da realidade, o diálogo lacônico entre os médicos revela que Alaíde
está sobre uma mesa de operação. Alternam-se os diálogos entre Alaíde e
Clessi no plano da alucinação e cenas do passado no plano da memória.
Alaíde diz a Clessi ter matado seu marido.
Aparece também a Mulher de Véu, cuja identidade Alaíde parece não querer
Aparece também a Mulher de Véu, cuja identidade Alaíde parece não querer
revelar. Madame Clessi pede a Alaíde que recorde o dia em que se casou.
Alaíde lembra-se de que sua futura sogra elogiou o vestido de noiva pouco
antes de ela entrar na igreja. Relembra também que havia mais alguém com
elas, mas não consegue identificar essa pessoa.
Segundo Ato
Diálogo entre Alaíde e Clessi ao microfone. No plano da memória, Alaíde e
Segundo Ato
Diálogo entre Alaíde e Clessi ao microfone. No plano da memória, Alaíde e
a Mulher de Véu discutem violentamente. A segunda parece disposta a
estragar o casamento de Alaíde. Aos poucos, descobre-se o motivo: o noivo
fora namorado da Mulher de Véu, e Alaíde roubara-o dela. Clessi interroga
Alaíde sobre a identidade da Mulher de Véu.
Plano da realidade: os médicos tentam os últimos recursos para salvar a vida
Plano da realidade: os médicos tentam os últimos recursos para salvar a vida
de Alaíde. Sua memória está em franca desagregação; acendem-se as luzes das
escadas laterais, das quais descem dois homens empunhando círios e se ajoelham
diante de uma cruz, no plano da alucinação. Duas cenas são apresentadas de
maneira entrecortada. Numa delas, a Mulher de Véu revela a Alaíde seu desejo
de vingança; na outra, Clessi conversa com um jovem namorado, e este sugere
que os dois se matem de amor. A mulher não parece levar a sério a conversa
do garoto.
No plano da alucinação, uma mulher se senta junto aos dois homens.
No plano da alucinação, uma mulher se senta junto aos dois homens.
Estão diante de um ataúde, dialogam num cínico tom de flerte. A conversa entre
Alaíde e a Mulher de Véu se torna cada vez mais tensa. Alaíde revela a Clessi
que a cena na qual os dois homens estão ajoelhados ante um ataúde é a do
enterro da própria Madame Clessi. A identidade da Mulher de Véu é
descoberta: trata-se de Lúcia, irmã de Alaíde.
Plano da realidade: Pedro pergunta aos médicos sobre a condição de sua
Plano da realidade: Pedro pergunta aos médicos sobre a condição de sua
esposa. Os médicos informam que o estado da paciente é grave, mas o homem
não demonstra nenhum abalo emocional.
Terceiro Ato
Alaíde descobre que não matou o marido. Novo diálogo entre Clessi e o
Terceiro Ato
Alaíde descobre que não matou o marido. Novo diálogo entre Clessi e o
jovem namorado, em que ele lhe pede para morrerem juntos. Alaíde e Lúcia
discutem no plano da alucinação, e aparecem outros personagens no meio
da discussão, entre os quais Pedro e Dona Lígia. Clessi e o namorado
conversam, ela entrega-lhe algum dinheiro. A mãe do jovem aparece e inicia
uma discussão com Clessi, na qual pede que a mulher deixe de ver seu filho.
Alaíde lamenta-se por confundir essas pessoas com personagens da ópera La
Traviata e do filme …E o Vento Levou. A discussão termina com Clessi
expulsando a mãe do rapaz de casa.
Plano da realidade: repórteres noticiam o acidente de Alaíde, descobrem se
Plano da realidade: repórteres noticiam o acidente de Alaíde, descobrem se
tratar de alguém importante, mulher do industrial Pedro Moreira.
No plano da alucinação, Alaíde conta a Clessi suas recordações sobre a
morte da mulher. Pedro surge e Clessi desaparece. Alaíde acusa Pedro de
não a amar e diz saber que ele e Lúcia desejam sua morte. Surge Lúcia de
luto fechado, os três juntam suas cabeças. Corte para o plano da realidade,
no qual o diálogo entre os médicos revela a morte de Alaíde. No plano da
alucinação, Alaíde e Clessi aparecem de costas para a platéia. Os repórteres
noticiam a morte de Alaíde e dizem que a irmã chora muito.
No plano da realidade, Pedro é repelido por Lúcia, que diz ter jurado diante
No plano da realidade, Pedro é repelido por Lúcia, que diz ter jurado diante
do cadáver da irmã não mais se aproximar dele. Diálogo entre Alaíde e Lúcia,
no qual Alaíde ameaça a irmã. Lúcia acusa Pedro de ter incutido nela o desejo
de que Alaíde morresse; falam de um “crime”, mas sempre entre aspas, o que
confere ambigüidade ao termo.
Cenas sucessivas apresentam saltos cronológicos: discussão entre Lúcia e sua
Cenas sucessivas apresentam saltos cronológicos: discussão entre Lúcia e sua
mãe; Lúcia volta de uma viagem, mais gorda e mais corada; Lúcia se prepara
para o casamento com Pedro e faz a Laura a mesma pergunta que Alaíde
fizera: “Estou muito feia, D. Laura?” – ao que Laura responde: “Linda!
Um amor!”. Lúcia pede o buquê, e essa é sua última fala. Madame Clessi
sobe uma escada. Surge também Alaíde, que caminha em direção a Lúcia
como quem vai lhe entregar o buquê. A cena se apaga, exceto por uma luz
que ilumina o túmulo de Alaíde.
Personagens
Alaíde: a protagonista. Casada com um homem importante (Pedro), é
Personagens
Alaíde: a protagonista. Casada com um homem importante (Pedro), é
atropelada no começo da peça. A tensão dramática se constrói sob a
expectativa de sua morte. Não se sabe se o atropelamento foi criminoso,
acidental ou decorrente de tentativa de suicídio, e esse é um dos grandes
êxitos da obra.
Lúcia (mulher de véu): irmã de Alaíde, surge inicialmente como a Mulher
Lúcia (mulher de véu): irmã de Alaíde, surge inicialmente como a Mulher
de Véu. Conforme a situação se descortina, descobre-se que Lúcia fora
escondida sob um véu em conseqüência da culpa que Alaíde sentia em relação
a ela. No passado, Pedro havia sido namorado de Lúcia, que acusava a irmã
de tê-lo roubado dela.
Pedro: industrial bem-sucedido. Após o casamento com Alaíde, continua a
Pedro: industrial bem-sucedido. Após o casamento com Alaíde, continua a
desejar Lúcia, a ex-namorada, e com ela planeja matar sua mulher.
Seu principal traço de caráter é o cinismo.
Madame Clessi: antiga prostituta de luxo assassinada por um jovem amante
Madame Clessi: antiga prostituta de luxo assassinada por um jovem amante
em 1905. A casa onde os pais de Alaíde e Lúcia foram morar tinha sido a
habitação de Madame Clessi e o local onde ela exercia sua profissão.
Sua figura é construída na imaginação de Alaíde, que, quando pequena,
encontrara no sótão da casa o diário de Madame Clessi.
Dona Lígia: mãe de Alaíde e de Lúcia, mulher de costumes conservadores,
Dona Lígia: mãe de Alaíde e de Lúcia, mulher de costumes conservadores,
representa o peso da tradição e dos bons costumes, que atuam sobre os
personagens principais.
Gastão: marido de Dona Lígia, pai de Alaíde e de Lúcia. Sua principal
Gastão: marido de Dona Lígia, pai de Alaíde e de Lúcia. Sua principal
aparição se dá no plano da memória, no qual está conversando com sua
mulher sobre as atividades que eram exercidas na casa na época de Madame
Clessi. “O negócio acabava numa orgia louca”, o curto diálogo, no qual
Gastão profere essas palavras, marca profundamente a protagonista.
Sobre Nelson Rodrigues
Nelson Falcão Rodrigues nasceu no Recife, em 23 de agosto de 1912, e
Sobre Nelson Rodrigues
Nelson Falcão Rodrigues nasceu no Recife, em 23 de agosto de 1912, e
mudou-se ainda criança para o Rio de Janeiro. Aos 13 anos começou a
trabalhar em jornal. Escreveu sua primeira peça, "A Mulher sem Pecado",
em 1941. Dois anos depois, a montagem de Vestido de Noiva revolucionou
o teatro nacional e transformou-o num dos principais dramaturgos brasileiros.
Sua obra teatral é assim classificada pelo crítico Sábato Magaldi: peças
Sua obra teatral é assim classificada pelo crítico Sábato Magaldi: peças
psicológicas (nas quais se incluem as duas primeiras), peças mitológicas
("Anjo Negro" e "Álbum de Família") e tragédias cariocas ("A Falecida"
e "O Beijo no Asfalto"). Suas obras causaram polêmica ao abordar temas
sexuais e morais, como o tabu do incesto e a infidelidade, de forma mórbida,
obsessiva e moralista.
Sua vida pessoal foi marcada por tragédias, como o assassinato do irmão e
Sua vida pessoal foi marcada por tragédias, como o assassinato do irmão e
o choque por saber que seu filho fora torturado pela ditadura militar, regime
que Nelson apoiou. Escreveu também os romances "Meu Destino É Pecar"
e "O Casamento", além de livros de crônicas. Morreu no Rio de Janeiro,
em 21 de dezembro de 1980.
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